quinta-feira, dezembro 11, 2008

Mais palavras para quê?!

Carta Aberta à Ministra da Educação

Excelentíssima Senhora Ministra da Educação,

Ao fim de três décadas e meia de docência, as políticas educativas do Governo do meu país levaram-me a pedir a aposentação antecipada e com penalização. Fugi da escola pública de hoje. A escola do facilitismo, da mediocridade, da desautorização dos professores, da desumanização, da irresponsabilidade, das estatísticas, da entrega dos deveres aos professores e dos direitos aos alunos,… Não foi para esta escola que dei tantos anos da minha vida. Nem foi assim que pensei terminar uma longa carreira de que gostei muito.

De Amarante a Matosinhos passando por Lisboa, Figueira da Foz, Porto, Espinho, Bragança, Marco de Canavezes, Vila Real, Barcelinhos, Penafiel, Famalicão e S. Pedro da Cova, ajudei a formar milhares de jovens. Foram muitos quilómetros percorridos quando não havia uma única auto-estrada. Mais do que uma vez tive que me sujeitar a ver as minhas três filhas pequeninas apenas aos fins-de-semana para ir, para longe, ensinar os filhos dos outros. Sem nada que me ajudasse a suportar as despesas. Tudo isto fiz com muito sacrifício mas muito gosto. Durante anos e anos amei o que fiz.

Para minha actualização frequentei mais de 50 acções de formação/seminários quer na área de informática, quer na minha área específica.

Fui Directora de Instalações, Representante de Disciplina, Delegada de Grupo, Directora de Turma, Vice-presidente do Conselho Executivo, Presidente do Conselho Administrativo, Representante de Área Disciplinar, Coordenadora de Departamento, Responsável pela Sala de Estudo, Presidente da Assembleia de Escola.

Leccionei todos os níveis de ensino desde o 5º ao 12º ano.

Orgulho-me do trabalho que sempre desenvolvi apesar do desânimo aumentar ano após ano. Nunca aspirei aos prémios que o Ministério atribui anualmente. Os meus prémios são as mensagens que recebo dos meus ex-alunos.

“Boa tarde professora,Não sei se ainda tem esta conta de email activa, mas espero que sim. Eu sou o seu antigo aluno Eduardo …, fui seu aluno de química no ano lectivo de 2004/2005, não sei se ainda se lembra de mim. Eu estou a acabar o meu curso na faculdade, estou já no ultimo ano e sou finalista, como tal, temos a tradição de assinar as fitas e eu gostava que a professora me assinasse a fita, uma vez que a considero a melhor professora que tive ate hoje, pois sempre acreditou em mim e fez todos os possíveis para me ensinar, não só a matéria correspondente a sua disciplina, mas também a ser um homem decente. Para alem de excelente professora, foi também uma grande amiga, que e algo que muitos professores não são e por isso gostava que me desse a honra de me assinar a fita. A minha queima das fitas é já esta semana e tenho de ter as fitas no dia 27, por isso peço resposta a este email o mais rápido possível, caso a professora não possa assinar-me as fitas antes dessa data, não há problema, assina depois pois o que conta para mim é que a fita seja assinada, independentemente da data. Gostava também de lhe pedir um favor…
Peço desculpa pelo incómodo e espero atentamente uma resposta.
Beijos e abraços, do seu antigo aluno e amigo,
Eduardo …”

Ou como esta recebida há dias quando chegou a minha aposentação.
“Soube ontem ao último tempo que a professora tinha recebido a carta da reforma. Vou ser sincero, fiquei muito triste por perder uma das melhores professoras de sempre.Paciente, simpática, honesta, humilde…. são muitas das características que a professora tem.A escola perdeu uma das melhores professoras ao serviço.Pessoalmente n estou triste por perder uma professora mas sim estou triste por ter perdido uma grande amiga que me ajudou sempre.Toda a turma ficou um bocado triste (embora querendo disfarçar através de sorrisos e risos), pois tem a consciência que vai ser difícil substituir uma professora como a s’tora.Diz-se que ninguém é insubstituível, mas a professora é das poucas pessoas que não podem substituídas por nada deste mundo.Aqui está á minha despedida muito humilde, não é que desejaria dar á professora pois o que lhe queria dar está para além dos meus alcances.Só deixo votos de felicidade e desejos que um dia nos voltemos a encontrar.Muitos beijos e abraços:Bruno …”

Pelos Eduardos, pelos Brunos e por todos os alunos que já me passaram pelas mãos, e que me atribuíram “medalhas” aguentei enquanto pude. Agora, acabou.

Vi e ouvi, com tristeza e uma revolta imensa, as posições inqualificáveis de membros do Governo perante a manifestação de 85% dos docentes do meu país. Não consigo aceitar que me apelidem de chantagista com uma leviandade sem nome. Não sou sindicalizada nem filiada em nenhum partido. Sempre pensei pela minha cabeça, disse o que penso, escrevi o que disse e assumi o que escrevo. Durante anos escrevi uma crónica mensal num semanário e insurgi-me contra a avaliação em vigor na altura. Realmente tinha que ser substituída. Mas por uma melhor, o que não é o caso. A mobilização que se conseguiu em Março a em Novembro não foi conseguida pelos sindicatos. Eles não têm capacidade para tal. A internet e o telemóvel são hoje os melhores meios de mobilização. A Senhora Ministra consegui, pela primeira vez, unir os professores e pô-los em contacto permanente uns com os outros.

O dia a dia de um professor é inimaginável por quem não o vive, como é o caso da Senhora Ministra. Pede-se aos professores que sejam, para além de transmissores de conhecimentos, mães, pais, psicólogos, assistentes sociais, amigos, …
“Os professores têm, cada vez mais, à sua frente um conjunto de órfãos de pais vivos.” - uma verdade que li aqui há tempos.
Que posso eu exigir de um aluno que vive com uma mãe com problemas mentais que lhe diz que o odeia e que o quer matar? E de uma jovem que chega às aulas da tarde sem ter comido absolutamente nada? E de uma jovem que vive, a meias com a mãe, com outro homem que não o pai? E de uma criança que dorme na sala e só pode descansar quando os pais resolvem deitar-se? E da jovem que fica a trabalhar no café dos pais até às tantas da madrugada? E poderia ficar aqui um tempo infindo a pôr a nu as situações com que os professores se debatem. Esta é a escola real. Uma escola cheia de problemas cuja resolução compete ao Estado mas com os quais os professores vivem diariamente. Estes jovens não podem ter o rendimento desejável mas, pressionar o professor a passá-los, não lhes resolve os seus problemas. Como não lhes resolve os seus problemas um computador oferecido pelo Governo. Ou o TGV. Ou um novo aeroporto na capital. Mas quem pode manda e define as prioridades que entende. Não são as minhas e não as entendo.

Para juntar a tudo isto, a Senhora Ministra elaborou um modelo de avaliação perfeitamente inaceitável. Diz a Senhora Ministra que os professores devem confiar nos seus colegas mais competentes (refere-se aos professores titulares) mas quem lhes atribuiu essa competência foi a Senhora Ministra ao pôr em prática o mais escandaloso dos concursos - o primeiro concurso para professor titular. “Há coisa mais injusta do que uma avaliação que não premeia o mérito?” - perguntou um dia destes a Senhora Ministra. Claro que não. Mas, pergunto eu, há maior injustiça do que o primeiro concurso para professor titular? E foi com base neste concurso, eivado de injustiças e arbitrariedades, que foi construído este modelo de avaliação. Sobre alicerces podres. Por mais voltas que lhe dêem, será sempre um modelo de avaliação em que a competência estará ausente.
(...)

O Programa Novas Oportunidades é outro embuste. Por aquilo que vejo, e pelas pressões das DREs para aprovar todos os alunos dos Cursos de Educação e Formação, dos Cursos Profissionais e Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, estão a qualificar-se milhares de analfabetos. Será isto que o país precisa, Senhora Ministra?
Segundo a Senhora Ministra, a implementação das aulas de substituição, que tanta polémica gerou, hoje faz-se confortavelmente. Engano, Senhora Ministra. Os professores que conheço, e são muitos, fazem-no porque a tal são obrigados mas fazem-no sem o mínimo de conforto e com o máximo descontentamento dos alunos.

O ambiente que se vive nas escolas é de uma tensão imensa. O desalento e a desmotivação são gerais e o clima de medo está instalado. E ainda vai piorar quando aparecer a figura do director prevista na lei.

O que se fez da escola pública? Como se pode ter toda uma classe profissional desmotivada? Eu saio sem conseguir perdoar a este Governo o ter-me roubado o prazer que eu tinha em exercer a profissão que escolhi. Nestes últimos anos foi muito penoso ir trabalhar. Muito penoso, mesmo.
Maria da Graça Pimentel
9 de Dezembro de 2008

4 comentários:

Nuno disse...

De facto, as coisas na educação estão a enveredar por um muito mau caminho. Acredito que muita gente não faça sequer uma pequena ideia do quão mau as coisas estão, mas quem tem conhecimento da realidade, quem a vive todos os dias, de certeza que está com algum receio em relação ao futuro da nossa sociedade. Eu estou! Apercebo-me que, cada vez mais, se estão a formar pessoas completamente ignorantes, desprovidas de valores, com comportamentos completamente desajustados à idade e ao local que frequentam. Sinceramente, não sei onde isto irá parar...

Beijos,
Nuno.

Joana Pinto disse...

Eu também não sei onde tudo isto vai parar, sei que este cenário não se começou a desenhar com esta ministra.É uma bolinha de neve que vem de há algum tempo e que continua...
Quanto ao dramatismo do testemunho,este vai muito ao encontro do que os docentes têm vindo a fazer nestes últimos tempos:uma campanha algo demagógica ao usar os alunos como escudo.Existe um claro aproveitamento em muitas situações.
Acredito que tudo esteja mais difícil, mas agora que vejo tudo do lado de fora, depois de lá ter estado dentro, confesso que cada mais têm menos razão.Têm de acabar com anos e anos de progressão sem avaliação.Devem ser avaliados e ponto final.Como, aliás, o deve ser toda a gente que labora neste país.Acreditem que uma sala de professores é um verdadeiro antro...
Para o fim, deixo os CNO que são, de facto,e indo ao encontro do que escreveu J Geria, uma monumental farsa. Já o são muitos dos cursos universitários, por isso está equilibrada a coisa...

Nuno disse...

Eu espero que o título deste post ("Mais palavras para quê?!") não sirva como desculpa para acabar com este blogue... É que já está na altura de uma actualização, não achas? Eu acho que sim... :)

Beijitos,
Nuno.

seixomirense disse...

"Os professores têm, cada vez mais, à sua frente um conjunto de órfãos de pais vivos." Esta frase diz muito. Poucos professores me deixaram marcas positivas. Talvez 1 em cada 8 que tinha por ano. Significa que muitos não têm qualidade mas por vezes devido a problemas de estabilizar a vida que eles enfrentam. Os professores têm que ser avaliados mas não é com este modelo chileno.Cada vez mais acho que os CNO são uma treta apesar de se calhar ter que ir estagiar para lá.